sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Visões do apartamento



Walnize Carvalho
Na janela, mulher empilha folhas de papel:
- inspiração.
Na calçada, homem empilha caixas de papelão:
- ganha-pão.
Na praça, velho empilha cartas de baralho:
- diversão.
Na rua, guarda empilha multas de trânsito:
- infração.
No bar, rapaz empilha engradados de cerveja:
- comemoração.
Na loteria, senhora empilha contas a pagar:
- inquietação.
No templo, jovem empilha folhetos:
- conversão.
No jornal, corpos empilhados em mais uma chacina:
- mundo cão.

domingo, 14 de novembro de 2010

A dança vesperal


Walnize Carvalho

Aproveitando o feriado resolvi ir até Niterói.
Primeira providência: ligar para a neta mais velha e marcar encontro.
Confirmada a ida ao shopping, preparei-me para descer à rua.
Mirei-me no espelho. Escolhi roupa, calçado, bijuteria e cor de batom,pois a menina gosta de me ver arrumada.
Olhei para o relógio. Cinco da tarde. Apressei-me. Desci. Observei que o vento enviesado era prenúncio da tempestade vespertina.
Ao por o pé na calçada ouvi grito de alerta: - Sujou! Olhei à volta. E, como num estalar de dedos, as calçadas da rua central ficaram limpas .
Olhei o céu. Não era a chuva anunciada, que fazia as pessoas se apressarem. A tempestade era outra.
Assim, como pássaros, habitualmente, voam desencontrados ao ouvirem tiros a distância, vindos dos morros da cidade, assim ,os camelôs faziam .Cada qual corria para proteger suas mercadorias ao pressentiram a chegada dos fiscais .
O grito era de um dos vendedores, que alertava seus colegas da presença dos moços fazendo com que todos saíssem em “revoada” .
Carregavam caixas na cabeça, sacolas nos braços, cabide e tabuleiro nos ombros. Deslizavam com carrinhos de feira, por entre carros apressados.Mercadorias variadas que iam desde relógios, canetas ,bijuterias ,bolsas, lenços , maquiagens, dvd’s, pilhas, brinquedos até filhotes de cachorro .
As calçadas ficaram livres. As pessoas recomeçaram a circular. Por uns instantes, fiquei parada. Dei alguns passos e posicionei-me em frente ao Teatro Municipal de Niterói.
Ouvi uma melodia suave vinda do chão, em meio a folhas secas, filipetas de propagandas, pontas de cigarro, papéis de balas, que o corre- corre urbano se incumbe de servir como desculpa para a desatenção e falta de educação dos transeuntes.
Abaixei-me e apanhei o objeto perdido: uma caixinha de música, onde uma bailarina rodopiava... rodopiava...
Segurei-a entre as mãos .Olhei à volta à procura do dono . O camelô já ia longe.
Olhei para o alto.Na fachada do prédio do teatro, um letreiro anunciava :
COMPANHIA DE DANÇA
SÁBADO – 19 HORAS
ÚNICA APRESENTAÇÃO .
Um sorriso melancólico estampou –se em meu rosto .
Acabara de assistir a um balé de todos os dias, a um espetáculo diário de grande metrópole.
Do outro lado da calçada, a neta me avistou.Saltitante veio ao meu encontro.

Bonecas


Walnize Carvalho
O dia chega: nove horas.
Rua movimentada.
Em uma esquina, uma senhora sentada,pacientemente, transforma retalhos coloridos em vestidos de boneca. Feitos de fitinhas, miçangas e bordados ,por certo, acalentaram sonhos de criança e, quem sabe, a lembrança dos seus também...
A noite chega: Vinte e uma horas.
Rua deserta.
Na mesma esquina ,um homem travestido.
Em trajes de brilho espera, impaciente, que lhe venham fazer companhia e dar vazão aos sonhos seus.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A freira e o guarda chuva

Walnize Carvalho
A mulher saiu à rua.
A tarde chuvosa não lhe dava assunto para crônica. Caminhava devagar pela rua vazia.
Seguia pela calçada fugindo da água e dos “ banhos” de lama provocados pelos motoristas dos carros que passavam.Carros de vidros escuros e fechados .
Ela e seu guarda chuva preto.
Ao dobrar a esquina, o vento sul envergou o seu protetor.
Nesse momento, cruzou por ela na calçada, uma freira: hábito preto, sandálias franciscanas .
O mesmo vento que fazia o seu guarda chuva rodopiar, levantou o véu da freira.
Por um momento, um balé sincronizado : A freira .O véu. A mulher. O guarda chuva.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Semelhanças


Walnize Carvalho

A árvore parece doente e só.
A pintura branca até a metade do seu caule assemelha-se a uma bota de gesso.
Sua coluna alquebrada e suas folhas ressecadas diagnosticam
osteoporose e doença de pele.
Solitária em um jardim de casa abandonada (casa de veraneio
fora de temporada).
Aguarda a visita de pássaros no fim da tarde, que virão para se
abrigar em seus galhos e lhe sussurrar cantos melodiosos.
A cena remexeu minhas lembranças.
Nitidamente me veio a imagem do velho ,que na infância vi no Asilo. Chamou-me e contou-me histórias.Retribuí com sorrisos e afagos.
A árvore.O velho.A criança.O pássaro: sutis semelhanças.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Poema para a nossa presidenta


500 anos esta noite

Pedro Tierra


De onde vem essa mulher
que bate à nossa porta 500 anos depois?
Reconheço esse rosto estampado
em pano e bandeiras e lhes digo:
vem da madrugada que acendemos
no coração da noite.

De onde vem essa mulher
que bate às portas do país dos patriarcas
em nome dos que estavam famintos
e agora têm pão e trabalho?
Reconheço esse rosto e lhes digo:
vem dos rios subterrâneos da esperança,
que fecundaram o trigo e fermentaram o pão.

De onde vem essa mulher
que apedrejam, mas não se detém,
protegida pelas mãos aflitas dos pobres
que invadiram os espaços de mando?
Reconheço esse rosto e lhes digo:
vem do lado esquerdo do peito.

Por minha boca de clamores e silêncios
ecoe a voz da geração insubmissa
para contar sob sol da praça
aos que nasceram e aos que nascerão
de onde vem essa mulher.
Que rosto tem, que sonhos traz?

Não me falte agora a palavra que retive
ou que iludiu a fúria dos carrascos
durante o tempo sombrio
que nos coube combater.
Filha do espanto e da indignação,
filha da liberdade e da coragem,
recortado o rosto e o riso como centelha:
metal e flor, madeira e memória.

No continente de esporas de prata
e rebenque,
o sonho dissolve a treva espessa,
recolhe os cambaus, a brutalidade, o pelourinho,
afasta a força que sufoca e silencia
séculos de alcova, estupro e tirania
e lança luz sobre o rosto dessa mulher
que bate às portas do nosso coração.

As mãos do metalúrgico,
as mãos da multidão inumerável
moldaram na doçura do barro
e no metal oculto dos sonhos
a vontade e a têmpera
para disputar o país.

Dilma se aparta da luz
que esculpiu seu rosto
ante os olhos da multidão
para disputar o país,
para governar o país.